17 fevereiro, 2006

Carregando Maomé


Vem do francês charger (carregar, no sentido de impor uma carga, exagerar) a palavra charge, cuja lembrança mais recente remete a quinze mortes. Muçulmanos não gostaram da carga imposta ao profeta Maomé, cuja reprodução artística, vide o abstracionismo geométrico da mesquitas, é proibida por sua crença. Seja com intenções depreciativas ou não. O jornal dinamarquês que publicou as charges agiu de acordo com outra crença não menos determinante no mundo ocidental como um todo: o que pode ser feito deve ser feito e isto é a liberdade. Esta palavra seguida pelo "de imprensa", permite que muitos objetos de interesse social venham à luz da sociedade (que bom) e que muitas coisas sejam ditas apenas porque alguns tem poder para tal e as buscam impor às pessoas (que pena).

As charges publicadas na Dinamarca no fim de 2005 faziam o que o ocidente já fez com todas as religiões, ou seja, desqualificavam seus ícones em nome do humor. No ocidente, ainda que alguns se ofendam, o silêncio dos ofendidos é a regra. Ainda que se critique, de qualquer forma, o humor ou a ofensa (depende dos olhos que vêem) não poderá ser considerado crime. (O que há de mais próximo à condenação criminal não é algo tão bem visto pelo Estado de Direito, atende pelo nome de censura e não opera propriamente com os imperativos legais, embora não faltem exemplos...) O Estado ocidental (Dinamarca), diz-se, é laico. Os muçulmanos que exigiram o pedido de desculpas da Dinamarca vivem outro paradigma, um Estado confessamente confessional que considera crimes o que no ocidente é só (e não para todos) heresia.

Os que publicam e republicam as charges não mataram ninguém, mas o efeito do que fizeram parece um pouco com a infâmia/glória dos homens-bomba/mártires (ocidente e Islã, respectivamente) com as respectividades trocadas. Quanto há de cegueira e irresponsabilidade em um atentado terrorista? Muito. E nos desenhos? Bem menos, mas o bastante, sobretudo nas republicações provocadoras, para que estes sejam, no mínimo, irresponsáveis.

A defesa intransigente da liberdade é uma contradição. A questão de valor de uso e valor de troca aparece aqui. Liberdade conquistada e usada em detrimento dos valores alheios é repressão. Para os outros, claro. E o que, na prática, importam os outros para os que vociferam pela liberdade de expressão própria ou pelos valores islâmicos? Acima do bem do respeito ao diferente tais intenções, a despeito de todo o bem alegado, ficam sendo só intenções (e até das boas o inferno está cheio). A bárbarie não são os outros. A barbárie é a impossibilidade de conviver com a diferença, o esforço pela imposição e o conseqüente enfrentamento de idéias que, fatalmente acabam por se esvaziar. Os bárbaros sempre estão dos dois lados das fronteiras, atrapalhando a vida de todos aqueles que não fazem (tanto) mal a ninguém e que são obrigados a compartilhar o mesmo solo.

3 Comments:

At 10:16 PM, Blogger Fábio Silveira said...

Você tocou em pontos fundamentais. Ainda assim, é uma questão que sofre uma manipulação política assustadora e que, de certa forma, se desvia um pouco do campo civil de reivindicações religiosas e culturais.

 
At 3:02 PM, Anonymous Anônimo said...

Eu concordo com vocês dois. O assunto é mesmo muito mais complexo que do que a maior parte dos meios de comunicação tem mostrado. Já escrevi o texto sabendo de sua incompletude. É bom que haja esse debate.

 
At 2:30 AM, Anonymous Anônimo said...

barbárie é acima de tudo desrespeitar o alheio

e foi isso q sucedeu
nem mesmos os islamicos simbolizam Allah ou o profeta.. é uma questão fundamental do islã a nao adoração à imagens... e a dinamarca se acha no incumbencia de o fazer da pior forma possivel..
sim!
merecem retaliações
por anos e anor de opressão
por tempos e tempos de pre conceito e discriminção q sofrem na europa ate antes de 11 de setembro..
essa caricatura é o choro no nó da garganta dos filhos de Allah
e esse choro deve ser escutado..

 

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